Entrevista com Silvio Tendler sobre os documentários Tancredo, a travessia e Utopia e Barbárie. A matéria foi publicada no JB (Caderno B) na forma de texto corrido, no dia 15 de janeiro de 2010.
Na época do lançamento de Jango, em 84, em plena campanha pelas Diretas Já, você comentava que, por meio do personagem título do filme, queria mostrar que o Brasil precisava da transição para a democracia, mas sem deixar de lado a justiça social, que era a bandeira de Jango. Enfocando agora o Tancredo Neves, o que você pretende mostrar?
— Quero desconstruir as articulações políticas que forjaram a candidatura dele à presidência em 85. Mostrar como se deu a política parlamentar à época, que não difere de hoje. A política encerra sempre uma boa dose de libido. Che Guevara fascina até hoje por seu discurso radical e por ser bonitão, parece um cavalo chucro. Já Tancredo, apesar de ser baixinho, de fala mansa, com um discurso conservador, também exerce um pouco essa espécie de fascínio. A ideia é mostrar como Tancredo, em plena ditadura militar, consegue convencer setores da esquerda e da direita que uma transição para a democracia poderia ser realizada sem recorrer à violência, de forma pacífica.
Como se deu essa articulação que o levou à candidatura presidencial nas eleições de 1985?
— Em 1954, quando ocorreu a crise política que terminaria com o suicídio de Vargas, Tancredo, que era ministro da justiça à época, foi um dos poucos que se manteve fiel a ele, junto com Alzira do Amaral Peixoto, filha de Vargas, e Oswaldo Aranha. Assim, ele passa a ser respeitado pelo PTB, pelos militares e pelo PSD, que o nomeia como conciliador quando Jânio Quadros renuncia à presidência, em 1961. Ele consegue convencer os militares a voltarem para os quartéis e Jango a aceitar o parlamentarismo, tendo Tancredo como primeiro ministro. Assim, ele evita um banho de sangue. É neste momento que ganha notoriedade como um político conciliador. E este perfil é que vai levá-lo a se tornar uma alternativa para a abertura política.
Assumir o governo de Minas Gerais em 1983, também foi um passo importante rumo à presidência.
— Claro. Na posse, inclusive, ele faz um discurso em favor da liberdade, já dando o recado que era possível derrubar a ditadura. Sobre esse momento, colhi depoimentos do Milton Nascimento, Wagner Tiso e Fernando Brant, que lançaram o manifesto Travessia, que acabou sendo o nome do filme, em favor de sua candidatura. Em 84, quando a emenda Dante de Oliveira, que previa eleições diretas para presidente em 85, é rejeitada pelo Congresso, Tancredo se torna uma alternativa para as forças que queriam derrubar a ditadura.
Como foi o processo de pesquisa de imagens?
— Foi muito mais fácil do que em 76, quando fiz o documentário sobre JK. Naquela época, consegui imagens na base da amizade, do favor. Também fui montando um acervo particular que hoje conta com mais de 100 horas em vídeo, me ajudando bastante para fazer o Tancredo, travessia. Fora isso, pesquisei no CPDoc do JB, que tem um material muito bom de imagens dos anos 80 e 60, nos quais me concentrei para o filme, e um time de craques na fotografia, a começar pelo Evandro Teixeira. Ainda fiz pesquisas na Cinemateca Brasileira, no Arquivo Nacional, nos acervos da TV Globo e TV Bandeirantes, entre outros lugares. Hoje, os acervos estão mais organizados e há maior disponibilidade, o que falta é tese. Você tem que conhecer história e saber pesquisar. Antes, tínhamos que contar com uma boa dose de sorte.
De quem mais você colheu depoimentos?
— Assim como nos outros documentários, procurei ouvir pessoas de diferentes orientações políticas. Ouvi o Paulo Maluf, que foi adversário dele durante as eleições de 85; o Francisco Dorneles, sobrinho e peça importante nas articulações para que Tancredo assumisse a presidência. Também fui atrás do general Leônidas, homem do esquema militar; do Jarbas Vasconcelos, que era do MDB, mas se recusou a votar no Tancredo. Vou ouvir ainda o Airton Soares, que foi expulso do PT por ter votado no Tancredo. Colhi depoimentos de jornalistas com pensamentos diferentes como Mauro Santayana, que era muito próximo ao Tancredo; e Ricardo Kotscho, que está longe de ser tancredista. Não tem como falar da nova república sem ouvir Sarney, que deu uma aula de política em seu depoimento. Cada um desses depoimentos é surpreendente em algum aspecto. Não privilegio ninguém, faço história.
É verdade que durante o contato com Sarney ele pediu que você fizesse um documentário sobre ele?
— Isso é invenção de um repórter da Folha que ficou me fustigando durante uma semana inteira querendo que eu batesse no Sarney. Eu não vou entrar nessa, até porque nunca vi um político ser condenado no Brasil, nem mesmo o Collor. Não sou preconceituoso, nem à direita, nem à esquerda. Faria sem problemas um documentário sobre Sarney, pois acho que a carreira política dele está se encerrando, o que é fundamental para pensarmos um documentário, senão vira campanha política. E minha intenção é fazer política, através do cinema, para lutar por metas, por objetivos. Definitivamente, um documentário sobre Sarney é um projeto que não existe, não está nas minhas prioridades.
Outro documentário seu, o Utopia e barbárie, também tem previsão de lançamento em abril. De que se trata?
— É um filme que venho realizando há 19 anos. É um pouco autobiográfico, sobre como ter 18 anos em 1968, quando foi editado o AI-5, que foi meu caso. O documentário mostra a visão política daqueles que viveram a ditadura e tentaram mudar a realidade que vivíamos. É um filme que dialoga com Tancredo, travessia. Enquanto este mostra as articulações das elites políticas da época, Utopia e barbárie foca o lado dos militantes. Nele, entrevistei alguns cineastas como Guilo Pontecorvo, Amos Gitai, Fernando Solanas, Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues.
O que veio primeiro na sua vida: o cinema ou a história?
— O cinema veio antes. Fui talhado para ser advogado, seguindo os passos do meu pai. Em 1964, eu tinha 14 anos e comecei a militar em diretórios estudantis e em cineclubes. Mais tarde entrei na universidade de direito e, durante o AI-5, leio no jornal que cinco advogados de presos políticos também estavam sendo presos. Diante disso, tranquei minha matrícula. Mais tarde, nos anos 70, comecei a estudar história na França, e fiz um pacto comigo mesmo de militar politicamente sempre pela arte, pela cultura.
Qual o principal entrave do cinema brasileiro hoje?
— O principal problema é a distribuição. Costumo dizer que a gente não faz filmes, conta segredo. Às vezes, promovo sessões especiais dos meus filmes e sempre há aqueles que perguntam: “quando o filme vai passar nos cinemas?”. E eu digo: “já passou”. O problema é que quando foram lançados, ficaram espremidos em poucas salas diante de um “arrasa-quarteirão” holywoodiano. Também acho que não conseguimos dialogar com a nossa realidade no cinema brasileiro, diferentemente do que está acontecendo na Argentina.
sexta-feira, 2 de abril de 2010
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