quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Muda

É difícil imaginar quando, em alguma época de nossas vidas, mudamos de pessoa. Damos um salto qualitativo ou involutivo, quase sempre beirando a neurose. Diriam ser este o trabalho de sondagem dos psicólogos. Ou dos escritores, poetas, filósofos...

A verdade é que isso acontece, não como gostaríamos ou poderíamos prever. O que resta é saber levar. Lamber as margens como um rio, que corre porque ainda não secou. E disso os peixes, os homens, e todo o ecossistema ao redor precisa. Persistir então. Pelo bem do leito.

Adequar-se a novas situações, mesmo que sejam incompreensíveis num primeiro momento. Fazer como os passáros, não se preocupar com a muda, pois inevitavelmente passará. E assim com num ciclo, entre cantos (encantos) e prostração, viver, voar.

Talvez seja essa a roda da existência, tão simples quando prestamos atenção nos exemplos de nossa evolução. Aprender com o tatu-bola, minhoca, cachorro, planta, terra e criança. A lição da qual nunca saberemos, caso contrário não existiriam, ou estatriam em voga, os psicólogos. Ou escritores, poetas, filósofos...

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Estranho mundo animal

Domingo de manhã numa festa junina para cães, com direito a desfile de moda canina caipira, dança de quadrilha e até propaganda política.

A reportagem foi publicada no JB (revista Domingo) no dia 20 de junho de 2010, sob o título 'Bom pra cachorro'.

“Bom dia amigos, para quem não me conhece eu sou o Totó, e eu sou bom pra cachorro. Com o oferecimento das coleiras Scalibor, podem começar a vestir seus cãezinhos porque daqui a 10 minutos vai começar”, dizia o mestre de cerimônias do concurso de moda caipira para cães, que lotou o Parcão da Lagoa na manhã do domingo passado. Enquanto isto, as pessoas formavam fila para atirarem bolinhas na boca do palhaço. Três tentativas para acertar e o brinde.

Parece que algumas pessoas trocaram as bolas, dada a quantidade de cães vestidos com motivos da Copa do Mundo. Era uniforme do Brasil para lá, bandeirinhas para cá... De tal forma que não teve jeito, e outra categoria teve que ser criada na hora. “Está bem pessoal, mas o tema Brasil é outro desfile. Agora é moda caipira”, e Totó tentava por ordem no recinto.

Um pouco antes do início da competição, trazendo seu “legítimo vira-lata” Jelly pela coleira, Eliane Dutra comentava: “nunca vi vira-lata ganhar nada. Só vencem os cachorrinhos de madame”, dizia a senhora, que participa há cinco anos do Blocão, também organizado por Totó e que sai em cortejo pela Avenida Atlântica uma semana antes do Carnaval. “Ela (Jelly) já foi de enfermeira, anjo, bailarina, Conde Drácula e Cleópatra, com peruquinha e tudo. Mas na foto só aparecem aqueles cãezinhos pequenos, bonitinhos”, e Eliane, trazendo uma foto de Jelly estampada em sua camiseta, protestava mais uma vez.

Forte concorrente era o poodle Frazão, que já tentava a premiação pelo quarto ano seguido. “Vamos ver se desta vez ele vence. Esta roupinha eu comprei em uma loja de roupas para bebê, não está lindo?”, perguntava Heluska Barroso, enquanto foi interrompida por Eliane, que pedia para tirar foto com Frazão. “Se ele não ganhar ninguém ganha. Primeiro porque ele é poodle, e segundo porque este muito bonito”, Eliane apostava.

Começado o desfile, todos se aglomeraram em torno da passarela. A cada candidato, os aplausos. Na hora do anúncio dos vencedores, algumas propagandas e a premiação. “Com o apoio da Bicho Bacana, Pet Gávea e Patas e Penas, atenção para os campeões”, anunciava Totó. Em primeiro lugar Frazão, seguido por Johnny e seu chapeuzinho de cangaceiro, e Jelly, a vira-lata. Emocionada, Heluska dizia: “são seres que não tem maldade. Estamos aqui num núcleo puro e inocente. É uma renovação de energia. Sempre levo o Frazão nos cãozamentos, festas de hallowen, no Blocão... Até fiz um Orkut (Frazão & Utah) para ele com todas as fotos dos eventos dos quais ele participa”. Algumas horas depois, a foto de Frazão vestido de caipira já estava na página da internet.

Após a premiação, a foto oficial. “Todos os cãezinhos aqui do Parcão reunidos para a nossa grande foto. Lembrando que quem tem que aparecer são os cães e não a gente hein, pessoal”, mais uma vez Totó tentava organizar o alvoroço, emendando a convocação: “quem está com a roupinha do Brasil já pode se preparar, porque aqui a diversão é boa pra cachorro”. Desta vez, outra barbada, dona Sonia Rocha trazia em uma cestinha toda ornamentada seus três cãezinhos vestidos com uniforme do Brasil. Sol, Lua e Estrela levaram o caneco, ou melhor, as cestas básicas caninas.

Após mais uma foto oficial, os presentes começaram a se organizar para a dança de quadrilha, com os donos passando pelo tradicional túnel feito com os braços, carregando seus respectivos cãezinhos no colo, aparentemente entediados.

No meio da festança, um protesto inesperado, até porque o repórter não havia chegado a tempo de presenciar tal cena: “Isto é festa para cachorro. Agora, quando o cara fala em política o povo vai esfriando. Tem que privilegiar o animal e não aproveitar a ocasião para lançar candidato a deputado federal. Não pode misturar as coisas. As propagandas estão certas, pois são as lojas que estão bancando o evento. Só que política já é demais”. Era Gil de Salvador, que, após discorrer longamente sobre o signo do repórter, se definiu como guru espiritual.

Atravessamos o Parcão para ouvir o outro lado. “Sabe o que foi. O Gil ficou puto comigo porque eu meti bronca”, dizia Totó, emendando. “Em época de eleição, aparecem muitos candidatos dando beijinho nos cachorros. São oportunistas, pois sabem que cachorro dá muito voto. Mas neste ano eu não vou permitir que os políticos se aproveitem dos animais. Ralo o ano todo, e os caras vem aqui panfletar. Por isso que eu já estou mostrando logo quem é quem”. E Totó prosseguia, explicando as qualidades de seu candidato. “O Sávio Neves é sério. Ele vai trazer os grandes eventos internacionais de cães para o Brasil. Nos EUA, um evento como este leva 20 mil pessoas a uma arena. E aqui, nós temos o segundo mercado de cães mundial, com cerca de 4 milhões de animais com endereço fixo no estado do Rio de Janeiro. Rola muita grana e o Sávio tem uma visão empresarial e macro sobre isto. Mas temos o lado social também”, e Totó dava o exemplo da renda do churrasquinho no Parcão, vendido a R$ 2, que seria toda revertida para a ONG Cão-Guia, que doa cães anualmente aos cegos.

Já se aproximando da hora do almoço, Totó se despede, dizendo que o próximo evento é o Natal Au-Au, que ocorrerá uma semana antes da inauguração da árvore da natal da Lagoa. Antes de a reportagem deixar o Parcão, porém, outra cena inusitada: uma senhora apareceu com três cachorros perguntando se ainda estavam distribuindo brindes. “Vim lá de Botafogo a pé com os bichinhos, será que eu não mereço ganhar nada?”. Fomos falar com o representante das lojas Pet Gávea, Bicho Bacana e Petas e Penas, que já estava arrumando suas coisas para ir embora. Mas antes, no entanto, mais uma propaganda: “Esta ração aqui que a senhora está levando como prêmio de consolação, é premium. Contém azeite de oliva e anti-oxidante, que retarda o envelhecimento do animal. Também tem um componente que ajuda a reduzir o odor da fezes do cachorro. Ela já está disponível em nossa filial de Botafogo. Acabando esta, não deixe de passar lá”.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Fala Sílvio

Entrevista com Silvio Tendler sobre os documentários Tancredo, a travessia e Utopia e Barbárie. A matéria foi publicada no JB (Caderno B) na forma de texto corrido, no dia 15 de janeiro de 2010.

Na época do lançamento de Jango, em 84, em plena campanha pelas Diretas Já, você comentava que, por meio do personagem título do filme, queria mostrar que o Brasil precisava da transição para a democracia, mas sem deixar de lado a justiça social, que era a bandeira de Jango. Enfocando agora o Tancredo Neves, o que você pretende mostrar?

— Quero desconstruir as articulações políticas que forjaram a candidatura dele à presidência em 85. Mostrar como se deu a política parlamentar à época, que não difere de hoje. A política encerra sempre uma boa dose de libido. Che Guevara fascina até hoje por seu discurso radical e por ser bonitão, parece um cavalo chucro. Já Tancredo, apesar de ser baixinho, de fala mansa, com um discurso conservador, também exerce um pouco essa espécie de fascínio. A ideia é mostrar como Tancredo, em plena ditadura militar, consegue convencer setores da esquerda e da direita que uma transição para a democracia poderia ser realizada sem recorrer à violência, de forma pacífica.

Como se deu essa articulação que o levou à candidatura presidencial nas eleições de 1985?

— Em 1954, quando ocorreu a crise política que terminaria com o suicídio de Vargas, Tancredo, que era ministro da justiça à época, foi um dos poucos que se manteve fiel a ele, junto com Alzira do Amaral Peixoto, filha de Vargas, e Oswaldo Aranha. Assim, ele passa a ser respeitado pelo PTB, pelos militares e pelo PSD, que o nomeia como conciliador quando Jânio Quadros renuncia à presidência, em 1961. Ele consegue convencer os militares a voltarem para os quartéis e Jango a aceitar o parlamentarismo, tendo Tancredo como primeiro ministro. Assim, ele evita um banho de sangue. É neste momento que ganha notoriedade como um político conciliador. E este perfil é que vai levá-lo a se tornar uma alternativa para a abertura política.

Assumir o governo de Minas Gerais em 1983, também foi um passo importante rumo à presidência.

— Claro. Na posse, inclusive, ele faz um discurso em favor da liberdade, já dando o recado que era possível derrubar a ditadura. Sobre esse momento, colhi depoimentos do Milton Nascimento, Wagner Tiso e Fernando Brant, que lançaram o manifesto Travessia, que acabou sendo o nome do filme, em favor de sua candidatura. Em 84, quando a emenda Dante de Oliveira, que previa eleições diretas para presidente em 85, é rejeitada pelo Congresso, Tancredo se torna uma alternativa para as forças que queriam derrubar a ditadura.

Como foi o processo de pesquisa de imagens?

— Foi muito mais fácil do que em 76, quando fiz o documentário sobre JK. Naquela época, consegui imagens na base da amizade, do favor. Também fui montando um acervo particular que hoje conta com mais de 100 horas em vídeo, me ajudando bastante para fazer o Tancredo, travessia. Fora isso, pesquisei no CPDoc do JB, que tem um material muito bom de imagens dos anos 80 e 60, nos quais me concentrei para o filme, e um time de craques na fotografia, a começar pelo Evandro Teixeira. Ainda fiz pesquisas na Cinemateca Brasileira, no Arquivo Nacional, nos acervos da TV Globo e TV Bandeirantes, entre outros lugares. Hoje, os acervos estão mais organizados e há maior disponibilidade, o que falta é tese. Você tem que conhecer história e saber pesquisar. Antes, tínhamos que contar com uma boa dose de sorte.

De quem mais você colheu depoimentos?

— Assim como nos outros documentários, procurei ouvir pessoas de diferentes orientações políticas. Ouvi o Paulo Maluf, que foi adversário dele durante as eleições de 85; o Francisco Dorneles, sobrinho e peça importante nas articulações para que Tancredo assumisse a presidência. Também fui atrás do general Leônidas, homem do esquema militar; do Jarbas Vasconcelos, que era do MDB, mas se recusou a votar no Tancredo. Vou ouvir ainda o Airton Soares, que foi expulso do PT por ter votado no Tancredo. Colhi depoimentos de jornalistas com pensamentos diferentes como Mauro Santayana, que era muito próximo ao Tancredo; e Ricardo Kotscho, que está longe de ser tancredista. Não tem como falar da nova república sem ouvir Sarney, que deu uma aula de política em seu depoimento. Cada um desses depoimentos é surpreendente em algum aspecto. Não privilegio ninguém, faço história.

É verdade que durante o contato com Sarney ele pediu que você fizesse um documentário sobre ele?

— Isso é invenção de um repórter da Folha que ficou me fustigando durante uma semana inteira querendo que eu batesse no Sarney. Eu não vou entrar nessa, até porque nunca vi um político ser condenado no Brasil, nem mesmo o Collor. Não sou preconceituoso, nem à direita, nem à esquerda. Faria sem problemas um documentário sobre Sarney, pois acho que a carreira política dele está se encerrando, o que é fundamental para pensarmos um documentário, senão vira campanha política. E minha intenção é fazer política, através do cinema, para lutar por metas, por objetivos. Definitivamente, um documentário sobre Sarney é um projeto que não existe, não está nas minhas prioridades.

Outro documentário seu, o Utopia e barbárie, também tem previsão de lançamento em abril. De que se trata?

— É um filme que venho realizando há 19 anos. É um pouco autobiográfico, sobre como ter 18 anos em 1968, quando foi editado o AI-5, que foi meu caso. O documentário mostra a visão política daqueles que viveram a ditadura e tentaram mudar a realidade que vivíamos. É um filme que dialoga com Tancredo, travessia. Enquanto este mostra as articulações das elites políticas da época, Utopia e barbárie foca o lado dos militantes. Nele, entrevistei alguns cineastas como Guilo Pontecorvo, Amos Gitai, Fernando Solanas, Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues.

O que veio primeiro na sua vida: o cinema ou a história?

— O cinema veio antes. Fui talhado para ser advogado, seguindo os passos do meu pai. Em 1964, eu tinha 14 anos e comecei a militar em diretórios estudantis e em cineclubes. Mais tarde entrei na universidade de direito e, durante o AI-5, leio no jornal que cinco advogados de presos políticos também estavam sendo presos. Diante disso, tranquei minha matrícula. Mais tarde, nos anos 70, comecei a estudar história na França, e fiz um pacto comigo mesmo de militar politicamente sempre pela arte, pela cultura.

Qual o principal entrave do cinema brasileiro hoje?

— O principal problema é a distribuição. Costumo dizer que a gente não faz filmes, conta segredo. Às vezes, promovo sessões especiais dos meus filmes e sempre há aqueles que perguntam: “quando o filme vai passar nos cinemas?”. E eu digo: “já passou”. O problema é que quando foram lançados, ficaram espremidos em poucas salas diante de um “arrasa-quarteirão” holywoodiano. Também acho que não conseguimos dialogar com a nossa realidade no cinema brasileiro, diferentemente do que está acontecendo na Argentina.